O termo afeição está relacionado aos sentimentos de apego sincero que se expressam entre pessoas, aos animais e aos objetos, porém, mais se destacam no âmbito das relações interpessoais, por meio da troca de carinho e amizade[1] o que se vislumbra socialmente com mais ênfase na convivência familiar, sendo fundamental a presença de “um relacionamento sadio e equilibrado entre pais e filhos, baseado no diálogo aberto, claro e sincero, na compreensão e orientação adequada, no carinho e no respeito das individualidades”[2].
A afetividade é, portanto, o resultado da junção de sentimentos internos subjetivos, influenciados pelo ambiente externo, o que nos faz entender que as influências emocionais decorrentes dos acontecimentos do cotidiano são fundamentais para o resultado do comportamento humano[3].
Nas palavras do psiquiatra Geraldo José BALLONE, a “afetividade valoriza tudo em nossa vida, tudo aquilo que está fora de nós, como os fatos e acontecimentos, bem como aquilo que está dentro de nós (causas subjetivas) [...] A Afetividade valoriza também os fatos e acontecimentos de nosso passado e nossas perspectivas futuras”[4].
Assim é que, dentro do núcleo familiar se observam as primeiras relações de afetividade, independente do seu termo inicial, ou seja, se ocorreu com o nascimento da criança ou com a sua recepção posterior nesse mesmo núcleo[5]. Nas sábias palavras da psicóloga catarinense Sheila R. de Oliveira FROEHNER:
É no grupo familiar que se inaugura no desenvolvimento psicológico e o sentimento de aceitação social, sendo nesse âmbito que a criança tem suas primeiras e mais importantes relações. Tais relações preparam não só o relacionamento com outras pessoas, mas também a evolução de sua personalidade, o que realmente torna-se necessário para todas as crianças. É a família que, em nossa cultura, dá a criança o suporte para enfrentar dificuldades, o que torna necessário seu entendimento e a aceitação para trabalhar essa possível dificuldade[6].
Já, no ordenamento jurídico, o princípio da afetividade deriva do princípio da dignidade da pessoa humana[7] e tem seu fundamento na ordem constitucional como base para compreensão da família “como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade”[8] e, apesar de não ser um princípio expresso na Constituição de 1988, a afetividade encontra sua evidência nos julgados dos tribunais e na doutrina de forma bastante a determinar a direção das decisões que protegem o hipossuficiente, fazendo com que o fator preponderante não seja mais a origem consanguínea, mas a afetividade evidenciada nas relações familiares[9].
Apesar deste princípio não se apresentar devidamente expresso no Termo Constitucional, a interpretação que se dá aos dispositivos ligados à existência de núcleo familiar demonstra que há pelo menos dois aspectos que definem essa relação, quais sejam, a proximidade e a convivência física entre os membros do núcleo, principalmente evidenciado no artigo 226, § 8, CF/88, corroborado com o artigo 28, § 2º do ECA, demonstrando a presença do afeto necessário para demonstração da existência de um núcleo familiar[10].
Ainda observando-se o Texto Máximo, há que se vislumbrar o afastamento da mera presunção de paternidade ou filiação ocorrida nos textos infraconstitucionais anteriores a 1988, reconhecendo-se hoje tão somente duas vertentes, quais sejam, a família formada por vínculo biológico, como descrito no artigo 226, § 4º e 7º CF/88 e a família social, na qual independe do vínculo consanguíneo para sua existência, como se observa do artigo 227, § 6º do Magno codex, novamente demonstrando intrinsecamente a presença de pura afetividade na formação do núcleo familiar.
O julgado, abaixo, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul demonstra supremacia da afetividade sobre o critério biológico garantindo o reconhecimento da filiação sócioafetiva e desconsiderando a paternidade biológica pretendida, in verbis:
Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. APELAÇÃO. FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE FILIAÇÃO C/C INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Instalada a paternidade sócio-afetiva ou sociológica, descabidas as alterações registrais determinadas pela sentença. Comprovada sócio afetividade, não é possível a declaração de filiação do pai biológico. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DESACOLHIDOS.[11]
No caso em comento, importante ressaltar que a decisão do Magistrado se fundamentou na existência de vínculo afetivo muito mais evidenciado do que o vínculo biológico do pai que pretendia a declaração de paternidade, deixando clara a preponderância desse princípio em detrimento da filiação genética.
No mesmo sentido, analisando o comportamento como se pai fosse, o magistrado da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná se pronunciou favoravelmente no julgado abaixo, deferindo o direito do pai manter-se no registro da criança após a dissolução da relação conjugal, pois ambos, pai e filho possuem laços de afetividade, mesmo sem a presença do vínculo biológico, in verbis:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DECLARATÓRIA-REGISTRO DE FILHO DE OUTREM - INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO - RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO E VOLUNTÁRIO - INTERESSE DO INFANTE - RELAÇÃO SÓCIO-AFETIVA. SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. 1. "O apelado, embora não sendo o pai biológico, sempre agiu como se o fosse, mesmo após o término do relacionamento com a genitora do apelante, o que demonstra a efetiva relação de afetividade." 2. "Necessário resguardar a efetividade da relação afetiva entre o pai registral e o filho, sempre no interesse do menor." 3. É preciso proteger o verdadeiro interessado da relação que é o infante, o qual se encontra incapacitado de externar seus verdadeiros pensamentos e opiniões acerca da relação jurídica em discussão[12].
Ainda, vale ressaltar o posicionamento de Paulo Luiz Netto LÔBO ao citar que o princípio da afetividade “não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico”[13], mas, no que diz respeito à filiação, “a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles”[14], como se lê no artigo 227, § 6º da CF/88, projetando-se “no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade”[15].
Outros julgados do Tribunal de Justiça do Paraná reforçam a aplicação do princípio da afetividade para a consecução dos direitos protegendo o interesse do menor, como se observa abaixo:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO DE REQUERIMENTO DE GUARDA DECISÃO QUE MANTEVE A GUARDA DO MENOR EM FAVOR DO GENITOR AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES PARA MANUTENÇÃO DA MEDIDA PROVAS QUE INDICAM PREJUÍZO EMOCIONAL DO INFANTE NA COMPANHIA DA FAMÍLIA PATERNA LAUDO TÉCNICO QUE APONTA PARA AFETIVIDADE DO MENOR COM A GENITORA PRESERVAÇÃO DOS INTERESSES DO MENOR DECISÃO REFORMADA RECURSO PROVIDO[16].
Observando-se a condição emocional da criança e do adolescente em relação ao seu genitor, a fim de se preservar a integridade dos laços afetivos que os envolve, não há que se deixar de aplicar este princípio e abandonar o principal objetivo, que é proteger o menor.
Na mesma linha de raciocínio caminha a seguinte decisão do Desembargador Clayton Camargo, do Tribunal de Justiça do Paraná, in verbis:
AÇÃO DE GUARDA - CRIANÇA CONFIADA AOS AVÓS PATERNOS - DECISÃO CORRETA À VISTA DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO - PRERROGATIVA CONFERIDA PELO PARÁGRAFO ÚNICO, DO ART. 1584, DO CÓDIGO CIVIL - APELAÇÃO IMPROVIDA. "Pode revelar melhores condições para exercer a guarda outra pessoa que não qualquer dos cônjuges, pelo que, verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, faculta-se ao juiz deferir a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade" (LUIZ EDSON FACHIN e CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK, in Código Civil Comentado, São Paulo: Atlas, v. XV, 2003, p. 252)[17].
Assim sendo, não resta dúvida de que a afetividade tem sido aplicada paulatinamente nas decisões mais sensatas dos tribunais apresentados, o que faz desse, um princípio necessário para proteção da criança e do adolescente, ainda mais no que diz respeito ao reconhecimento de filiação.
[1] AFEIÇÃO. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Século XXI: o minidicionário da língua portuguesa. 5. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 27.
[2] MARIANA, Maria Cristina Malimpensa. A Arte da Convivência Familiar. Disponível em: < http://www.clinicamcm.com.br/home/index.php?option=com_content&view=article&id=109:a-arte-da-convivencia-familiar&catid=38:psicologia&Itemid=55> Acesso em 30 Ago. 2011.
[3] Ballone, Geraldo José. Afetividade. PsiqWeb Psiquiatria Geral, Internet, 2000. Disponível em <http://www.psiqweb.med.br/afeto.html>. Acesso em 30 Ago. 2011.
[4] Idem.
[5] FROEHNER, Sheila R. de Oliveira. A Importância da Família no Desenvolvimento de cada um de seus Membros. Disponível em: . Acesso em: 31 Ago. 2011.
[7] TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 Nov. 2008.
[8] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. Disponível em: . Acesso em 01 Mai. 2011.
[9] OTONI, Fernanda Aparecida Corrêa. A Filiação Sócioafetiva no Direito Brasileiro e a Impossibilidade de sua Desconstituição Posterior. Disponível em: . Acesso em: 01 Mai. 2011.
[10] ROSSOT, Rafel Bucco. O afeto nas relações familiares e a faceta substancial do princípio da afetividade. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, n. 9, abr./mai. 2009. p. 16.
[11] TJRS - 7ª C.Cível – Emb.Declar. 70040373714 - Estrela - Rel.: Des. Roberto Carvalho Fraga - Unânime - J. 23.03.2011. Disponível em: . Acesso em: 01 Mai. 2011.
[12] TJPR - 12ª C.Cível - AC 0336376-8 - Uraí - Rel.: Des. José Laurindo de Souza Netto - Unânime - J. 19.07.20. Acesso em: 30 Ago. 2011.
[16] TJPR - 12ª C.Cível - AI 0663551-4 - São Mateus do Sul - Rel.: Des. Clayton Camargo - Unânime - J. 12.05.2010. Disponível em: . Acesso em: 30 Ago. 2011.
[17] TJPR - 11ª C.Cível - AC 0371263-8 - União da Vitória - Rel.: Des. Mendonça de Anunciação - Unânime - J. 11.07.2007. Disponível em: . Acesso em: 30 Ago. 2011.