segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A Afetividade no Ordenamento Jurídico

O termo afeição está relacionado aos sentimentos de apego sincero que se expressam entre pessoas, aos animais e aos objetos, porém, mais se destacam no âmbito das relações interpessoais, por meio da troca de carinho e amizade[1] o que se vislumbra socialmente com mais ênfase na convivência familiar, sendo fundamental a presença de “um relacionamento sadio e equilibrado entre pais e filhos, baseado no diálogo aberto, claro e sincero, na compreensão e orientação adequada, no carinho e no respeito das individualidades”[2].

A afetividade é, portanto, o resultado da junção de sentimentos internos subjetivos, influenciados pelo ambiente externo, o que nos faz entender que as influências emocionais decorrentes dos acontecimentos do cotidiano são fundamentais para o resultado do comportamento humano[3].

Nas palavras do psiquiatra Geraldo José BALLONE, a “afetividade valoriza tudo em nossa vida, tudo aquilo que está fora de nós, como os fatos e acontecimentos, bem como aquilo que está dentro de nós (causas subjetivas) [...] A Afetividade valoriza também os fatos e acontecimentos de nosso passado e nossas perspectivas futuras”[4].

Assim é que, dentro do núcleo familiar se observam as primeiras relações de afetividade, independente do seu termo inicial, ou seja, se ocorreu com o nascimento da criança ou com a sua recepção posterior nesse mesmo núcleo[5]. Nas sábias palavras da psicóloga catarinense Sheila R. de Oliveira FROEHNER:


É no grupo familiar que se inaugura no desenvolvimento psicológico e o sentimento de aceitação social, sendo nesse âmbito que a criança tem suas primeiras e mais importantes relações. Tais relações preparam não só o relacionamento com outras pessoas, mas também a evolução de sua personalidade, o que realmente torna-se necessário para todas as crianças. É a família que, em nossa cultura, dá a criança o suporte para enfrentar dificuldades, o que torna necessário seu entendimento e a aceitação para trabalhar essa possível dificuldade[6].
 

Já, no ordenamento jurídico, o princípio da afetividade deriva do princípio da dignidade da pessoa humana[7] e tem seu fundamento na ordem constitucional como base para compreensão da família “como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade”[8] e, apesar de não ser um princípio expresso na Constituição de 1988, a afetividade encontra sua evidência nos julgados dos tribunais e na doutrina de forma bastante a determinar a direção das decisões que protegem o hipossuficiente, fazendo com que o fator preponderante não seja mais a origem consanguínea, mas a afetividade evidenciada nas relações familiares[9].

Apesar deste princípio não se apresentar devidamente expresso no Termo Constitucional, a interpretação que se dá aos dispositivos ligados à existência de núcleo familiar demonstra que há pelo menos dois aspectos que definem essa relação, quais sejam, a proximidade e a convivência física entre os membros do núcleo, principalmente evidenciado no artigo 226, § 8, CF/88, corroborado com o artigo 28, § 2º do ECA, demonstrando a presença do afeto necessário para demonstração da existência de um núcleo familiar[10].

Ainda observando-se o Texto Máximo, há que se vislumbrar o afastamento da mera presunção de paternidade ou filiação ocorrida nos textos infraconstitucionais anteriores a 1988, reconhecendo-se hoje tão somente duas vertentes, quais sejam, a família formada por vínculo biológico, como descrito no artigo 226, § 4º e 7º CF/88 e a família social, na qual independe do vínculo consanguíneo para sua existência, como se observa do artigo 227, § 6º do Magno codex, novamente demonstrando intrinsecamente a presença de pura afetividade na formação do núcleo familiar.

O julgado, abaixo, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul demonstra supremacia da afetividade sobre o critério biológico garantindo o reconhecimento da filiação sócioafetiva e desconsiderando a paternidade biológica pretendida, in verbis:



Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. APELAÇÃO. FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE FILIAÇÃO C/C INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Instalada a paternidade sócio-afetiva ou sociológica, descabidas as alterações registrais determinadas pela sentença. Comprovada sócio afetividade, não é possível a declaração de filiação do pai biológico. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DESACOLHIDOS.[11]



No caso em comento, importante ressaltar que a decisão do Magistrado se fundamentou na existência de vínculo afetivo muito mais evidenciado do que o vínculo biológico do pai que pretendia a declaração de paternidade, deixando clara a preponderância desse princípio em detrimento da filiação genética.

No mesmo sentido, analisando o comportamento como se pai fosse, o magistrado da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná se pronunciou favoravelmente no julgado abaixo, deferindo o direito do pai manter-se no registro da criança após a dissolução da relação conjugal, pois ambos, pai e filho possuem laços de afetividade, mesmo sem a presença do vínculo biológico, in verbis:



APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DECLARATÓRIA-REGISTRO DE FILHO DE OUTREM - INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO - RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO E VOLUNTÁRIO - INTERESSE DO INFANTE - RELAÇÃO SÓCIO-AFETIVA. SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. 1. "O apelado, embora não sendo o pai biológico, sempre agiu como se o fosse, mesmo após o término do relacionamento com a genitora do apelante, o que demonstra a efetiva relação de afetividade." 2. "Necessário resguardar a efetividade da relação afetiva entre o pai registral e o filho, sempre no interesse do menor." 3. É preciso proteger o verdadeiro interessado da relação que é o infante, o qual se encontra incapacitado de externar seus verdadeiros pensamentos e opiniões acerca da relação jurídica em discussão[12].



Ainda, vale ressaltar o posicionamento de Paulo Luiz Netto LÔBO ao citar que o princípio da afetividade “não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico”[13], mas, no que diz respeito à filiação, “a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles”[14], como se lê no artigo 227, § 6º da CF/88, projetando-se “no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade”[15].

Outros julgados do Tribunal de Justiça do Paraná reforçam a aplicação do princípio da afetividade para a consecução dos direitos protegendo o interesse do menor, como se observa abaixo:



Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO ­ AÇÃO DE REQUERIMENTO DE GUARDA ­ DECISÃO QUE MANTEVE A GUARDA DO MENOR EM FAVOR DO GENITOR ­ AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES PARA MANUTENÇÃO DA MEDIDA ­ PROVAS QUE INDICAM PREJUÍZO EMOCIONAL DO INFANTE NA COMPANHIA DA FAMÍLIA PATERNA ­ LAUDO TÉCNICO QUE APONTA PARA AFETIVIDADE DO MENOR COM A GENITORA ­­ PRESERVAÇÃO DOS INTERESSES DO MENOR ­ DECISÃO REFORMADA ­ RECURSO PROVIDO[16].



Observando-se a condição emocional da criança e do adolescente em relação ao seu genitor, a fim de se preservar a integridade dos laços afetivos que os envolve, não há que se deixar de aplicar este princípio e abandonar o principal objetivo, que é proteger o menor.

Na mesma linha de raciocínio caminha a seguinte decisão do Desembargador Clayton Camargo, do Tribunal de Justiça do Paraná, in verbis:



AÇÃO DE GUARDA - CRIANÇA CONFIADA AOS AVÓS PATERNOS - DECISÃO CORRETA À VISTA DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO - PRERROGATIVA CONFERIDA PELO PARÁGRAFO ÚNICO, DO ART. 1584, DO CÓDIGO CIVIL - APELAÇÃO IMPROVIDA. "Pode revelar melhores condições para exercer a guarda outra pessoa que não qualquer dos cônjuges, pelo que, verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, faculta-se ao juiz deferir a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade" (LUIZ EDSON FACHIN e CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK, in Código Civil Comentado, São Paulo: Atlas, v. XV, 2003, p. 252)[17].



Assim sendo, não resta dúvida de que a afetividade tem sido aplicada paulatinamente nas decisões mais sensatas dos tribunais apresentados, o que faz desse, um princípio necessário para proteção da criança e do adolescente, ainda mais no que diz respeito ao reconhecimento de filiação.





[1] AFEIÇÃO. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Século XXI: o minidicionário da língua portuguesa. 5. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 27.
[2] MARIANA, Maria Cristina Malimpensa. A Arte da Convivência Familiar. Disponível em: < http://www.clinicamcm.com.br/home/index.php?option=com_content&view=article&id=109:a-arte-da-convivencia-familiar&catid=38:psicologia&Itemid=55> Acesso em 30 Ago. 2011.
[3] Ballone, Geraldo José. Afetividade. PsiqWeb Psiquiatria Geral, Internet, 2000. Disponível em <http://www.psiqweb.med.br/afeto.html>. Acesso em 30 Ago. 2011.
[4] Idem.
[5] FROEHNER, Sheila R. de Oliveira. A Importância da Família no Desenvolvimento de cada um de seus Membros. Disponível em: . Acesso em: 31 Ago. 2011.
[6] Idem.
[7] TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 Nov. 2008.
[8] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. Disponível em: . Acesso em 01 Mai. 2011.
[9] OTONI, Fernanda Aparecida Corrêa. A Filiação Sócioafetiva no Direito Brasileiro e a Impossibilidade de sua Desconstituição Posterior. Disponível em: . Acesso em: 01 Mai. 2011.
[10] ROSSOT, Rafel Bucco. O afeto nas relações familiares e a faceta substancial do princípio da afetividade. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, n. 9, abr./mai. 2009. p. 16.
[11] TJRS - 7ª C.Cível – Emb.Declar. 70040373714 - Estrela - Rel.: Des. Roberto Carvalho Fraga - Unânime - J. 23.03.2011. Disponível em: . Acesso em: 01 Mai. 2011.
[12] TJPR - 12ª C.Cível - AC 0336376-8 - Uraí - Rel.: Des. José Laurindo de Souza Netto - Unânime - J. 19.07.20. Acesso em: 30 Ago. 2011.
[13] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio...
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] TJPR - 12ª C.Cível - AI 0663551-4 - São Mateus do Sul - Rel.: Des. Clayton Camargo - Unânime - J. 12.05.2010. Disponível em: . Acesso em: 30 Ago. 2011.
[17] TJPR - 11ª C.Cível - AC 0371263-8 - União da Vitória - Rel.: Des. Mendonça de Anunciação - Unânime - J. 11.07.2007. Disponível em: . Acesso em: 30 Ago. 2011.